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Festival de Jazz Hot Club de Portugal

75.º aniversário 2023

 

 

 

Este texto surge muito tarde, e hesitei em escrever sobre a festa dos 75 anos do Hot Club de Portugal, até devido à minha actual condição de membro da direcção – e aqui fica desde já a minha declaração de interesses. E nesta condição, enfim, ser-me-ia talvez aconselhada prudência.
Mas não falar de um tão importante evento, ainda que tarde, seria um absurdo, mas também, não menos importante, ao longo dos dois dias foram levantadas algumas pertinentes questões de que gostaria de falar. E completaria que as minhas opiniões me comprometem apenas a mim, e não aos restantes membros da direcção (e não as discuti com ninguém, e mesmo se a minha opinião poderá ser tomada como contaminada por essa minha qualidade de membro da direcção), e se (relendo o texto) fui incapaz de não assumir a «defesa» do HCP, e também não sei sequer se estas linhas serão consensuais ou bem aceites (no clube).

A festa
A comemoração dos 75 anos do Hot Club de Portugal (eu insisto em dar ao clube o nome «Hot Club» e não «Hot Clube», o nome que de facto está oficialmente registado, mas que terá sido adoptado apenas para cumprir uma exigência do nacionalismo bacoco do Estado Novo.) realizou-se num momento em que o clube acabava de fechar por razões de segurança do edifício, não se perspectivando a reabertura para breve. Pareceria importante apresentar ao público o melhor do Hot Club, os seus melhores produtos, informar o público do que é a sua actividade, capitalizar a simpatia dos amantes do Jazz neste momento dramático. E esses terão sido os critérios que nortearam a programação (onde eu não interferi ou fui sequer levado a opinar - nem tinha de o ser porque não sou o programador, mas com que, devo dizer, inteiramente concordo).
Os dois espaços escolhidos – Teatro da Comuna e Fórum Lisboa (com o apoio da EGEAC) – revelaram-se também acertados.
Dos cinco concertos, dois deles seriam naturalmente obrigatórios: a Orquestra do Hot Club de Portugal e o Sexteto do Hot Club de Portugal. Um terceiro, igualmente óbvio, recuperaria o reencontro do primeiro director da escola do Hot nos anos 80 com o seu último aluno: Zé Eduardo e João Paulo Esteves da Silva.
E quanto aos outros dois, o critério terá sido apresentar grupos e projectos impactantes de músicos nascidos no Hot ou muito próximos; e a escolha recaiu no The Mingus Project, um projecto surgido de uma ideia do professor Nelson Cascais para os seus alunos; e os Lokomotiv – um trio de veteranos com uma forte ligação ao Hot Club, e que foram ou são alunos e professores da escola do Hot. Acresce que os Lokomotiv fazem este ano 25 anos de idade, e esse é também um motivo de celebração.

Para alimentar as jam sessions, os critérios terão sido semelhantes na escolha de dois trios de ocasião, dirigidos pelo jovem Hugo Lobo e o veterano Filipe Melo – com profundas ligações ao Hot Club; restando por fim os concertos programados para a tarde de sábado: três combos da Escola de Jazz Luís Villas Boas – HCP, igualmente óbvios.
Last but not least, o Hot Club de Portugal organizou ainda uma mesa redonda submetida ao tema «O ensino do Jazz em Portugal», que teve como animadores Zé Eduardo, Pedro Moreira, Bruno Santos e Gonçalo Marques, quatro dos directores da Escola do Hot Club de Portugal, e que teve também a participação do público.
Procurarei não me alongar no panegírico aos concertos do festival, de que os meus leitores farão o favor de deduzir, se assim o entenderem, o excesso laudatório, que advém da minha condição de membro da direcção do Hot Club. 

Os concertos
Lokomotiv
Os Lokomotiv são um trio de personalidades – e as personalidades são determinantes no Jazz – com um percurso de vida (musical) bastante distinto, e essas personalidades revelam-se na música do trio. Tendo surgido há um quarto de século (e uma vez mais, estão de parabéns!) de uma ideia do contrabaixista Carlos Barretto, um verdadeiro monstro do seu instrumento, o trio junta ainda o baterista José Salgueiro, um músico ecléctico com uma sonoridade percussiva muito peculiar, e Mário Delgado, um virtuoso da guitarra com gostos e sonoridade também muito variados, entre o Jazz e o rock. Acresce que os três são também compositores e líderes de projectos próprios.
Música inconformada, angulosa, moderna, sem compromissos formais, tem no Jazz a sua referência maior, na forma como as personalidades comunicam, como se ouvem, como reagem ao momento, como se inspiram entre si e nas composições, para a improvisação, naturalmente, num gosto pela construção musical instantânea, patente na alegria de tocar, na alegria de criar.
The Mingus Project
Os The Mingus Project surgiram de uma ideia do professor Nelson Cascais para ajudar os seus alunos a tocar colectivamente, através da música de Charles Mingus.
A música do contrabaixista, compositor e activista político Charles Mingus tem inspirado gerações de músicos, tendo até, pela mão da viúva, Sue Mingus, originado duas formações (Mingus Dinasty e Mingus Big Band), reunindo gerações de músicos que se dedicaram a explorá-la, durante muitos anos, e que tocaram até, em Portugal, por diversas ocasiões.
É uma música popular, mesmo se artificiosa e inquieta, poderosa, cheia de um humor cáustico, realmente inspiradora, e o quinteto – constituído por Nelson Cascais (Cascais é contrabaixista), Ricardo Toscano, Diogo Duque, André Sousa Machado e João Pedro Coelho -, foi capaz de mostrar no palco as suas virtudes. Outra aposta ganha - concerto muito aplaudido, com razões, percorreu um pouco do repertório mais popular de Charles Mingus, entre as quais o inevitável «Fables of Faubus».
Zé Eduardo e João Paulo Esteves da Silva
Reza a história que, no momento que o professor Zé Eduardo abandonava a Escola do Hot Club para ir dirigir o Taller de Musics de Barcelona, no início dos anos 90, ele deixou umas pautas ao jovem recém chegado à escola João Paulo, para ele ir treinando.
Mais de trinta anos depois essas pautas seriam o motivo do reencontro no Hot Club, no Ciclo «Histórias do Jazz em Portugal» (em 2014) organizado por Manuel Jorge Veloso e António Curvelo.
A festa dos 75 anos do Hot Club de Portugal proporcionou novo encontro dos dois músicos, pertinente na sua razão de ser, num concerto muito bonito. Diria que se Zé Eduardo continua persistente na sua concepção de Jazz tradicional e duro, João Paulo não renegou as suas origens pianísticas clássicas, mas, nesse encontro conflituoso, os dois músicos de Jazz sobreviveram, num concerto, como disse, de grande beleza.
Orquestra de Jazz do Hot Club de Portugal
Dirigida por Pedro Moreira, a Orquestra de Jazz do Hot Club de Portugal fez um excelente concerto, mergulhando forte no repertório clássico de Jazz para orquestra. Entre os privilegiados estiveram Duke Ellington e Woody Herman, e «a música que Luis Villas Boas ouviria em 1948, ano da fundação do Hot Club de Portugal». Orquestra poderosa, absolutamente clássica nos preceitos, sápida e voluptuosa, foi convincente na explanação do a que vinha. Lado a lado veteranos e jovens músicos, demonstrando a vitalidade da orquestra e afinal, do Jazz que se faz em Portugal – que é, em grande medida, produto do Hot Club de Portugal e da sua escola.
Sexteto de Jazz do Hot Club de Portugal + convidados
E o encerramento da Festa do Hot Club coube ao seu sexteto. O grupo, eventualmente denominado «Long Ago and Far Away», explicita, até no nome, a nostalgia que o grupo assume no repertório clássico, e na «época de ouro» do Jazz («Long Ago and Far Away» é uma composição de Jerome Kern e Ira Gershwin para o filme «Cover Girl» de Charles Vidor de 1944. A canção, no filme cantada por Rita Hayworth, teve inúmeras interpretações ao longo dos anos, tanto por músicos de Jazz – Errol Garner, Phil Woods, Chet Baker, Oscar Peterson, Lee Konitz, Benny Carter, John Abercrombie, Paul Bley... – como fora do Jazz, e até por Amália Rodrigues - «On Broadway», 1965.)
O sexteto, constituído por João Moreira, Kirill Bubiakin, Bruno Santos, João Pedro Coelho, Romeu Tristão e André Sousa Machado (direcção do guitarrista Bruno Santos), convidou ainda Jeffery Davis, Maria João, Mário Laginha, Ricardo Toscano e Rita Maria, num desfilar de estrelas que fazem parte do património imaterial do Hot Club de Portugal. Um grand finale para a Festa dos 75 anos do Hot Club de Portugal.
Jam sessions
Sobre as jam sessions que animaram as noites de sexta e de sábado, o mínimo que haverá a dizer é que foram muito participadas, jovens músicos e veteranos lado a lado, sem regras, comungando da mesma vontade e da mesma alegria do Jazz. As jams terminaram nas duas noites já perto das três da manhã.

Mesa redonda: O ensino do Jazz em Portugal
A mesa redonda sobre o ensino do Jazz em Portugal, que decorreu na tarde de sábado, foi também muito participada. O público acorreu, curioso, e não deixou de intervir, revelando o interesse pelo tema e pelo Jazz.
Algumas questões foram levantadas na mesa redonda, mas também ao longo do festival, e sobre elas gostaria de discorrer um pouco: elas são importantes.
As questões são pertinentes e versaram o carácter elitista do Jazz em Portugal e dos seus executantes e o afastamento do Jazz das suas raízes populares, que se consubstanciaria, por exemplo, na ausência de negros; mas também a ausência de mulheres, e em especial de mulheres instrumentistas no Jazz em Portugal e no Hot Club.
Estas são questões que não se colocavam há 75 anos, e talvez nem há dez; mas importa que o Hot Club reflicta sobre elas, porque elas são, de facto, pertinentes.

Um pouco de História
O Hot Club foi criado em 1948 com o objectivo de promover a divulgação do Jazz, enquanto música, enquanto género musical; reunindo um grupo de indivíduos que pertenciam, de facto, a uma elite, num país que vivia numa ditadura pacóvia, avessa a veleidades modernistas. Havia a «arte popular», nacional, que o regime promovia, e havia a arte «marginal», mais ou menos tolerada (e estou a caldear surrealistas com neo-realistas e outras correntes artísticas, nas suas múltiplas formas, artes plásticas com literatura, música, teatro, bailado, etc.). O Jazz era uma forma musical estrangeira, exógena, e o regime desconfiava dela, o que era patente até no que eu referi, na forma como obrigou o «Hot Club» a alterar o nome para «Hot Clube».   
O Jazz tinha contaminado a Europa nos anos 20, mas o atraso social e cultural do Portugal periférico impediu que ele chegasse até nós, e apesar da abertura de alguma pouca Lisboa, que lhe trouxe pouco mais que a espuma, nalguma imprensa escandalosa e na vida nocturna. Mas não trouxe músicos nem público: o Jazz tardava; e o golpe de Estado de 1926 e a ditadura que ele impôs liquidaram as poucas veleidades das francesices e estrangeirices da elite lisboeta.
Portugal era uma sociedade fechada – e assim se manteve até aos anos 60 - e foi neste panorama que os primeiros fanáticos do Jazz nasceram, a partir de alguns raros contactos com a Europa, nos anos 40. Mas isso determinou também o carácter elitista do Hot Club, que ao longo de um quarto de século (muito tempo – ademais se olharmos o que o Jazz evoluiu nesse período) resumiu a sua actividade a alguns encontros ocasionais; e os concertos e as jam sessions, e até as audições, que o clube organizou, seriam até excepções – uma vintena bem contada!!!. Não era fácil a actividade cultural fora dos cânones e do enquadramento do regime nesse período, e a organização de concertos ou qualquer tipo de actividade estava largamente condicionada. Mas diria também que esse pequeno escol de amantes do Jazz estaria até relativamente confortável na sua qualidade de elite.
Os amantes do Jazz e os sócios do Hot Club pertenciam maioritariamente a uma elite social, das classes média-alta. Sem nada que obstruísse, estatutariamente, a entrada de qualquer indivíduo, em termos de classe social, cor de pele ou género, o Hot Club era constituído maioritariamente por homens, brancos, e privilegiados do ponto de vista da classe social; que eram afinal indivíduos que tinham a oportunidade e os meios para comprar discos (ou instrumentos), viajar ao estrangeiro, assistir a concertos ou, de qualquer forma, consumir «arte».
Enfim, no início dos anos 70 aconteceu o Festival de Jazz de Cascais (e ele foi determinante na popularidade do Jazz em Portugal a partir dos anos 70 – e uma vez mais pela mão de Luís Villas Boas), o Hot Club abriu as portas ao mundo e fundou a primeira escola de Jazz em Portugal; e – estendi-me um pouco demais talvez sobre a História do Hot Club - saltemos, pois, cinquenta anos, para a actualidade.
O Hot Club é hoje um clube democrático, no sentido em que qualquer indivíduo se pode fazer sócio e votar nas assembleias, e também os condicionamentos para a entrada para a sua escola são apenas o de possuir alguns conhecimentos musicais e o pagamento da propina. E aqui residirão, de facto, alguns condicionamentos sociais – afinal a Escola do Hot Club é uma escola privada, que não depende dos subsídios do Estado ou outros, e ela subsiste das propinas dos seus alunos. E cara – porque ela precisa oferecer aos seus alunos o melhor, os melhores professores e as melhores condições, além de que os instrumentos também não são baratos.
Noutros países, nos EUA onde o Jazz nasceu, ou outros com um nível de vida superior, ou onde o Estado investe na cultura dos seus cidadãos, esses condicionamentos sociais serão talvez mitigados, mas não é essa a realidade nacional, onde o Estado abdicou de ensinar música na Escola. Acresce que o Jazz não é uma forma popular em Portugal, mesmo se se reconhece o papel que a Escola do Hot Club, e as outras escolas de Jazz, têm tido no incremento do nível dos músicos – e hoje é fácil reconhecer músicos que passaram pelas escolas de Jazz nos grupos musicais de todos os géneros. E, já agora, o Jazz não possui em Portugal as raízes sociais, culturais e motivações, que o enformaram e enformaram a sua razão de ser e evoluir (como nos EUA), sendo elas quase estritamente musicais. O que estava na mente dos fundadores do Hot Club era apenas música, ou pouco mais.

Elitismo e inclusão social
Comentando as intervenções do público na conferência, que apontaram o carácter elitista do Hot Club: sim, o Hot Club é um clube e uma escola elitista, mas como o são, afinal, todas as escolas de Jazz (e mesmo, de facto, de música) em Portugal; e permanece o único clube de Jazz nacional, mesmo não sendo a única associação divulgadora, promotora do Jazz; e existem várias associações de músicos, editoras e outras.
Respondendo à segunda intervenção que questionou a ausência de negros no Hot Club, eu diria que a realidade social americana que gerou o Jazz não tem correspondente em Portugal, e os comentários não fazem sentido. Se as intervenções pretendem assinalar o carácter elitista do Jazz do Hot Club (e do Jazz em Portugal), elas têm razão, e o Hot deverá, talvez, tê-las em conta.
Falando da Escola e comentando as duas questões, que estarão interligadas: histórias de jovens talentosos que não puderam seguir a carreira musical devido à impossibilidade financeira da família são inúmeras; mas de que forma é que uma escola particular, que vive apenas de si, das propinas dos seus alunos, pode contribuir para o que deverá ser uma política de inclusão social? – creio que a margem não é muita.
Ainda assim, as questões são pertinentes e faz para mim todo o sentido para mim que o Hot Club inclua nas suas preocupações o contributo para a inclusão social. De que forma é que isso pode ser feito é o repto que lanço.

Jazz e feminismo – a denúncia
Uma terceira questão que foi levantada ao longo do festival, e expressa até na intervenção de uma espectadora, foi a exclusão de mulheres instrumentistas na festa do Hot. E respondendo directamente à espectadora: não há. Não há instrumentistas, ou há muito poucas, mulheres, no Jazz, em Portugal - contam-se pelos dedos.
(E começo por fazer um parênteses: a voz é um instrumento como outros. O que a torna diferente é a sua característica de lhe juntar palavras, eventualmente poesia, que «esclarecem» a música, que lhe retira o carácter abstracto que lhe é próprio, mas nem sempre. Mas também, pela popularidade, a voz é, de facto, um instrumento especial. Sobre este assunto muito haveria a discorrer, mas direi apenas que a maior parte das mulheres que estuda Jazz são cantoras, sendo que em segundo lugar estão as pianistas.)  
Em boa verdade não é um problema nacional: a maior parte dos músicos de Jazz, em todo o mundo, desde sempre, são homens. E em boa verdade também, não é um problema do Jazz, é da arte, e afinal da sociedade, do lugar (secundário) que as mulheres ocupam na sociedade. Não é um problema do Hot Club nem é um problema do Jazz: é um problema da sociedade, e é necessário resolvê-lo.
«A maioria das profissões: médicos, advogados, caminhoneiros, são profissões tidas como masculinas. Então eu não diria que o jazz é preconceituoso. Acho que a música é um reflexo da sociedade que vivemos.» - disse Lakecia Benjamin, em entrevista à revista Veja.
Ainda assim, elas – músicas mulheres e instrumentistas também, existem, e remeteria para o pequeno levantamento que fiz no meu texto «As mulheres e o Jazz», que os meus leitores poderão ler em JazzLogical.
A desigualdade homem-mulher existe – no trabalho, nas artes e nas ciências, na religião, nas relações pessoais, na família, na sociedade, enfim, e ela assume formas camufladas e capciosas-, a violência sobre as mulheres existe, o assédio existe, a violação existe, e persiste, numa sociedade que se autodenomina de moderna e civilizada (e escuso-me de falar sobre o lugar que a mulher ocupa nas sociedades islâmicas ou outras que consideramos «incivilizadas» ou «atrasadas»).
É um problema da nossa sociedade, que foi moldada de acordo com os interesses da relação de dominação homem-mulher («a dominação masculina» de que Bourdieu falava), ao longo dos séculos. (E o «problema» nem sempre será compreendido pelos homens que se consideram a si mesmos civilizados, mas que pactuam comodamente com a desigualdade.)
É um problema da nossa civilização de preceitos judaico-cristãos, onde a mulher ocupa um lugar secundário. E se aparentemente a mulher na (nossa) «civilização ocidental» goza de liberdades e direitos, eles foram conquistados por elas, sempre contra e apesar, da religião e das igrejas. E muito está por fazer. A comprová-lo estão os fundamentalistas de todos os lados, e os debates e as lutas das mulheres pelo direito ao aborto (em nome de Deus!) – o direito elementar das mulheres ao seu corpo e à sua sexualidade.
As mulheres exigem para si elementares direitos de comportamentos (apenas admitidos aos homens), como os direitos à sexualidade nas suas múltiplas formas, por exemplo, mas de igual modo coisas simples como o direito de entrar em todo o lado (nos clubes de homens do desporto, da economia, do divertimento…) e vestidas da forma que entenderem. Manifestando o «orgulho de ser mulher» e exigindo o lugar na sociedade que não seja o secundário – determinado «por ter sido forjada a partir de uma costela do homem».
E são nesse sentido compreensíveis as manifestações feministas mais radicais, disparando em todos os sentidos, em objectos (soutien…), instituições ou indivíduos, e eu diria que por vezes de forma desfocada e mesmo para além do razoável.
Mas estarei, talvez, a dispersar-me.
Regressando ao que anteriormente escrevi: não existem, ou são muito poucas, as mulheres instrumentistas no Jazz em Portugal, para além do instrumento voz.

Mulheres no Jazz – a realidade
Olhemos um pouco a realidade nacional.

Essa programação (2020) era claramente desequilibrada para o lado dos homens, com um grupo exclusivamente masculino e sete homens para quatro mulheres, duas das quais exclusivamente vocalistas.

[A propósito: no início de 2019, já depois da minha conferência do ISCTE (Conferência «As Mulheres e o Jazz», 7 de Dezembro 2018), propus à direcção do Hot Club a realização de um ambicioso ciclo dedicado às mulheres no Jazz, o que foi na altura rejeitado, creio, por questões de oportunidade. ]
Mas vejamos mais exemplos retirados do panorama Jazz nacional:

E estou a esquecer-me de outras mulheres (as minhas desculpas). Mas, com excepção para as vozes, as mulheres no Jazz são raras e os seus grupos são maioritariamente constituídos por homens, e muito poucas lograram revelar-se como instrumentistas maduras e com personalidade.
Se os projectos femininos são minoritários no panorama nacional (à semelhança do panorama internacional), eles são maioritariamente vocais. Mas os dois únicos grupos femininos que se apresentaram num recente festival de Jazz a que assisti – Festa do Jazz 2022 não (me) convenceram; e sobre eles escrevi: Trio HERSE: «Clássico nos fundamentos, ocasionalmente folk … música sem emoção, melancólica, sem modulação» e Lantana: «As Lantana não revelaram em palco consistência musical. Ancoradas num vanguardismo trânsfuga ao Jazz e prestações incipientes e dispersas demonstraram o pouco trabalho de casa de composição e ausência de ideias musicais».
E o mesmo no que respeita aos discos gravados. Se olharmos os catálogos das editoras nacionais (ignorando o alheamento das grandes editoras para com o Jazz, que levou a que muitos projectos resultem em discos de autor) o panorama é semelhante.
Não fiz um levantamento exaustivo, mas arriscaria que, das centenas de discos editados pela Clean Feed, a única presença feminina nacional é a Susana Santos Silva, e mesmo os nomes internacionais (femininos) são largamente minoritários.
Da menos de meia centena de discos editados pela JACC (algumas centenas de músicos), apenas encontrei menos de uma dezena de instrumentistas femininas, e delas apenas metade portuguesas.
Também não fiz um levantamento exaustivo mas, no catálogo da quase centena de discos editados pela Porta-Jazz, apenas meia dezena tem mulheres na liderança, e as mulheres nos instrumentos não ultrapassarão a dezena.

Enfim, é a realidade que confirma as palavras de Lakecia Benjamin « … a música é um reflexo da sociedade que vivemos.»
Mas são também a Joana Machado, a Beatriz Nunes, a Marta Hugon e muitas outras, e são as editoras que confirmam que as mulheres no Jazz são raras e quase apenas cantoras. No Jazz e na música pop e nas artes e na sociedade, afinal.

— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento (Dom Quixote de La Mancha, Miguel de Cervantes)
Perguntaríamos: culpar o Hot Club por não ter instrumentistas femininas na sua festa será extensível à Joana Machado, à Beatriz Nunes, à Marta Hugon, que não têm mulheres nas suas bandas, ou à JACC e à Jazz.pt e à Clean Feed por não editarem discos de mulheres?
E enfim, em minha opinião (atenção: este é o momento para começar a atirar pedras!), não existe neste momento em Portugal nenhum projecto feminino com a qualidade, a força e a espectacularidade dos que foram apresentados na Festa dos 75 anos do Hot Club de Portugal. Isso não decorre do facto de o Hot Club ser uma instituição machista, mas de não existirem instrumentistas mulheres e afinal «da sociedade que vivemos».
Não é a primeira vez que o Jazz e as instituições jazzísticas são acusadas de machismo, e recordo que ainda no ano passado a Jazz.pt (que é propriedade da JACC) foi acusada de machismo devido a uma crítica a um festival. Escuso-me de me pronunciar sobre o assunto em concreto mas, até onde me é dado observar, as críticas são quase sempre primárias e radicais, incipientes e pouco fundadas.
Também no campo académico, apesar de o feminismo ter (em Portugal) raízes centenárias e distintas, a produção actual é parca e primária. A generalização será injusta, porque se baseará na minha ignorância. Mas os poucos trabalhos que conheço acusam o Jazz apenas porque é fácil e está mesmo a jeito. E note-se que não estou a dizer que os músicos, os produtores, os jornalistas, os críticos ou os amantes do Jazz não são machistas. Mas eles (nós – os homens e as mulheres) fazemos parte da sociedade e a sociedade é machista: «… eu não diria que o jazz é preconceituoso. Acho que a música é um reflexo da sociedade que vivemos».
Concluir que, porque não há mulheres no Jazz ou que não há instrumentistas, o Jazz é machista (ou o HCP ou a Jazz.pt ou a JACC, ou até as cantoras que têm bandas masculinas), é fácil, mas é deslocado e é uma simplificação abusiva. Eu sugeriria, se me é permitido, que a academia fosse mais fundo: procurar as razões que levam a que não haja mulheres no Jazz e menos ainda instrumentistas; e procurar soluções, contributos para que as mulheres conquistem a igualdade, o lugar que lhes pertence no Jazz e na sociedade. (E note-se, uma vez mais, que se o Jazz vocal ocupa um lugar à parte no Jazz, ele não é um género menor, a meu ver, bem pelo contrário. Mas ele merece/ necessita um olhar diferente.)

As mulheres na Escola do Hot
E aqui, tenho uma boa notícia para a insurgente espectadora: desde o ano passado (ainda na gestão da Inês Cunha e por proposta do director da escola Gonçalo Marques) as mulheres passaram a pagar metade da propina na Escola de Hot Club na quase totalidade dos instrumentos. É um esforço financeiro violento, e o Hot Club não tinha de o fazer por ser uma instituição privada (e que apenas tem estatutariamente como objectivos contribuir para a divulgação do Jazz), mas a anterior direcção assim o entendeu, e a meu ver bem; e este é também o entendimento da actual direcção. 
Já agora, o esforço de captação do Hot Club de alunas para o Jazz tem resultado, nos últimos dez anos, num crescimento consistente: as mulheres são hoje 34% do total de alunos, contra 22% em 2012/2013 («hoje», corresponde ao ano lectivo passado). Significativamente, em dez anos, a percentagem de mulheres no instrumento voz passou de 74% para 53% hoje e, pelo contrário, os «outros instrumentos» cresceram de 26% para 47%: o futuro é risonho.
Enfim, talvez sim, talvez não. Porque o passado nos diz que a percentagem de mulheres que abandona a música é bastante superior à dos homens. A fragilidade da economia, as pressões da sociedade, o «lugar da mulher» na «cultura machista», tudo contribui para o abandono da música. (Mais duas sugestões de temas para a academia estudar: as motivações da escolha da voz como instrumento preferencial e as razões do abandono escolar musical feminino.)
Mas, enfim, eu acredito, espero, que nas comemorações dos 80 anos do Hot Club de Portugal as mulheres ocuparão um lugar mais equalitário, com propostas consistentes (como não existem agora).
Mas penso também que a igualdade não é/deve ser um interesse particular (ou uma moda), e os indivíduos, a academia e as instituições têm responsabilidades. Todos nós temos o dever de pensar o que é que podemos fazer, contribuir, para uma sociedade inclusiva e a igualdade almejada. Apontar o dedo é fácil, protestar é fácil, mas contribuir é mais difícil; e se o dever é colectivo, o Hot Club tem o dever de fazer mais e melhor. O Hot Club tem as qualificações, mas os seus fundos não são infinitos (ademais agora que vive um período de crise em virtude de ter o clube fechado); como é que ele pode estender a sua política inclusiva? – O Hot Club poderá, talvez, procurar financiamentos estatais ou privados, workshops convidando instrumentistas femininas (até como exemplo) como Ingrid Jensen, Alison Miller, Lakecia Benjamin, Mary Halvorson, Anna Weber, sei lá, organizar conferências e eventos com o fim de trazer mulheres para o Jazz; tudo está em aberto e deve ser pensado. Mais do que apontar o dedo ou apelar a que as mulheres venham tocar, é preciso pensar e concretizar.

HCP 75
Enfim, a festa do 75.º aniversário do Hot Club de Portugal correu bem. Muita música, e boa, muita alegria e muito público: salas sempre cheias. O HCP vive dias difíceis, mas logrará ultrapassá-los, tenho a certeza. As questões que se levantaram ao longo dos três dias são significativas da sua vitalidade e do momento que a sociedade atravessa, da necessidade da inclusão social e de género, e da igualdade que urge construir; e o Hot Club deverá estar atento e reflectir sobre elas.

 

Sex 17
Março
Lisboa Teatro da Comuna 22.00 Lokomotiv Mário Delgado (g), José Salgueiro (bat), Carlos Barretto (ctb)
24.00 Hugo Lobo Trio - jam session Hugo Lobo (p), Romeu Tristão (ctb), Gabriel Moraes (bat)
Sáb 18
Março
Lisboa Teatro da Comuna 22.00 The Mingus Project Nelson Cascais (ctb), Ricardo Toscano (s), Diogo Duque (t), João Pedro Coelho (p), André Sousa Machado (bat)
24.00 Filipe Melo Trio - jam sesssion Filipe Melo (p), Romeu Tristão (ctb), João Pereira (bat)
Lisboa Teatro da Comuna 15.00 Combos da Escola de Jazz Luiz Villas-Boas Hernâni Almeida (st), Francisco Gaspar (g), Alexander Pichler (p), Ricardo Antunes (ctb), Tomás Almeida (bat)
Prof: Gonçalo Prazeres
Masha Soeiro (p), Philippe Paymal (g), Miguel Picareta (ctb), Raúl Areias (bat)
Prof: Bruno Santos
Rosa Antunes (voz), Guilherme Balsinhas (voz), André Machado (st), David Conchinha (g), João Curado (b-el), Tiago Galrito (g)
prof: Paulo Santo
Lisboa Teatro da Comuna 19.00 Zé Eduardo e João Paulo Esteves da Silva Zé Eduardo (ctb), João Paulo Esteves da Silva (p)
Dom 19
Março
Lisboa Fórum Lisboa 19.00 Orquestra de Jazz do Hot Club de Portugal
«O Jazz que Villas-Boas ouvia em 1948»
Pedro Moreira (dir), Ricardo Toscano (sa), Tomás Marques (sa), João Capinha (st), Bernardo Tinoco (st), Júnior Maceió (sb), Paulo Gaspar (cl), Micael Pereira (t), Diogo Duque (t), Luis Cunha (t), Gonçalo Marques (t), Johannes Krieger (t), Lars Arens (trb), André Ribeiro (trb), Ricardo Sousa (trb), Rui Ferreira (trb), Óscar Graça (p), Francisco Brito (ctb), Pedro Felgar (bat)
Sexteto de Jazz do Hot Club de Portugal + convidados João Moreira (t), Kirill Bubiakin (st), Bruno Santos (g), João Pedro Coelho (p), Romeu Tristão (ctb), André Sousa Machado (bat)
+ Jeff Davis (vib), Maria João (voz),, Mário Laginha (p), Ricardo Toscano (sa), Rita Maria (voz)